A marca de 400 mil mortos pela Covid-19 no Brasil provoca em mim um parar instantâneo e uma posterior diminuição da fluidez da minha energia interna. Como a cada chegada a números redondos e expressivos por si só, digiro a notícia por meio da consternação, passando pela tristeza e querendo alcançar prognósticos – até onde vamos chegar, meu Deus? É dia derradeiro de abril, mês em que o outono começa a se mostrar pelo anil do céu e o descenso das temperaturas, o que deixa o clima mais ameno e agradável, tomando como base as altas temperaturas que todos os estados brasileiros experimentam nos primeiros meses do ano.
A partir de abril, cessam também as chuvas que caem em muitos cantos do país e, em suas aparições mais devastadoras, levam consigo o pouco que muitos brasileiros em situação de vulnerabilidade possuem, seus lares e sua paz, fato que também estamos acostumados a ver todo ano. “São as águas de março fechando o verão, é a promessa de vida no teu coração”, escreveu o maestro Tom Jobim em “Águas de Março”, uma de suas muitas brilhantes composições, e que emprestou ao talento ímpar de Elis Regina para cantar com ele uma das gravações mais importantes e reproduzidas da música brasileira.
Uma vez, lendo o livro “O Som do Pasquim” – uma compilação de entrevistas com grandes nomes da música brasileira dadas ao jornal “O Pasquim”, histórico periódico brasileiro altamente independente e de oposição ao regime militar, editado nas décadas de 70 e 80 – na parte da entrevista do Tom Jobim, logo no começo, os jornalistas concordam que ele foi o maior compositor que o Brasil já teve. Sou um fã babão de Tom, de sua genialidade, sensibilidade, maestria. Da forma como expõe o belo da sua pátria na sua música. Já escrevi sobre isso aqui, mas vale reforçar. Tom é gênio, espetacular, com quem divido o emputecimento por ele ter morrido sem poder vê-lo ao vivo, e comigo mesmo, por não ter nascido anos antes para ter essa oportunidade.
De março para abril, de Tom Jobim para Vinicius de Moraes – outro que nos deixou cedo demais! Em homenagem às sensações que a chegada do quarto mês do ano evoca, o poeta desenhou em sua brilhante composição “As Cores de Abril”, com Toquinho:
“As cores de abril
Os ares de anil
O mundo se abriu em flor
E pássaros mil
Nas flores de abril
Voando e fazendo amor…”
Poesia cantada. Por isso Vinicius foi tão brilhante, e apaixonante. Todo ano, nos desfechos de março, recordo-me que é quase hora de cantar “As Cores de Abril”. Agora já está nos finalmentes, com maio batendo à porta. Sei que, pouco após digerir a notícia de passados de 400 mil mortos pela Covid no país, vim aqui numa parte externa de casa e olhei para o céu, o que faço muito. Vi sua pureza, sua cor, sua vida. Lembrei-me que ainda “podia” cantar a poesia de Vinicius – não é a mesma coisa em outras épocas do ano, você pode imaginar. Imediatamente minha mente trouxe a lembrança dos mortos, privados de ver esse céu azul lindo que faz aqui em Londrina, e que imagino, em todo o Brasil nessa época do ano.
Concordo com o jornalista João Batista Natali – que em texto publicado nessa semana na Folha de S.Paulo, disse que “deixou de existir” por 21 dias enquanto ficou intubado na UTI do Hospital Sírio-Libanês -, e que chorou compulsivamente ao ouvir do rádio “Paixão segundo São Mateus”, de Bach, após sair da intubação. Nas palavras do jornalista: “não estou apenas feliz por me ver diante do que é belo; minha felicidade vem do fato de estar vivo para experimentar sensorialmente a beleza da cantata barroca”.
Estar vivo é algo que transcende a razão e é belo por si só, dando-nos a oportunidade de desfrutar e compartilhar o melhor do mundo e de nós. Tom Jobim me faz adentrar no cenário de março e me despedir por meio da vida e da arte das águas que abrem alas ao anil do céu que Vinicius de Moraes, seu parceiro de tantas outras canções, tão sensivelmente nos descreveu. Através deles vivo essas experiências com mais intensidade e atenção, vendo que há sentido e que sou um privilegiado. Por estar vivo, agradeço e penso sobre os meus irmãos mortos, que possam contemplar esse céu azul mais de perto, onde haja união e cura para toda sua dor. Que Deus os receba e com eles esteja. A nós, força e sabedoria para emocionar-se com mera música que toca no rádio, ou com o azul do céu, em abril ou maio que pede passagem.

Sem Vinicius ou sem Jobim.
Sem eles será o fim da poesia?
saudoso blogueiro, ela não terá fim
Sempre haverá alguém a sonhar
E cantar, por isto acalme-se, sorria.
Por mais triste que seja o obituário,
Em decorrência da impiedosa pandemia,
Não se abata com o noticiário diário,
Nada acontecerá a quem em Deus confia.
Assim, escriba, não se deixe abater,
Pois o simples fato de viver,
Já é um consolo e um alento.
Mesmo na noite escura, sem se ver nada
É prenúncio de que vai chegar a alvorada.
Há esperança, esteja sempre atento.
Cantemos então, com Vinicius ou Jobim
As águas de março, despedindo do verão
os obstáculos de avançar não nos impedirão.
Mesmo com pau e pedra no caminho sem fim.
Resposta do advogado e poeta Sebastião Nei dos Santos, meu avô, à minha crônica acima.
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Muito legal Fábio a resposta do seu Nei . Você tem a quem puxar ! Parabéns
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É Fábio, o fato de estar vivo e respirando o ar de outono é uma benção. Ontem perdi meu sobrinho pelo covid . Mais um que se foi
e virou estatística. Estou tão abalado que me falta motivacao para escrever. Esses dias apenas existo ….Grande abraço
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